A tutela jurídica da estabilidade da moeda aos 60 anos do BC
- jalvares7
- 10 de abr.
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No último dia 31 de março, o Banco Central completou 60 anos de fundação. Houve muitas conquistas institucionais a celebrar neste período, mas, para um banco central, não há triunfo maio do que receber do legislador a meta inequívoca de buscar a estabilidade de preços e os meios adequados para tanto. É assim que o BC chega ao marco atual, como guardião da moeda e amparado por um regime jurídico vinculante para toda a administração pública.
A evolução institucional do BC nestes 60 anos divide-se em três períodos: os primeiros 20 anos, caracterizados pelo ecletismo de objetivos e por um regime jurídico de dominância fiscal; os 10 anos seguintes, marcados pelo processo de separação entre as políticas monetária e fiscal, mas ainda sob finalidades múltiplas; e os 30 anos mais recentes, de construção do regime jurídico de proteção da estabilidade do poder de compra da moeda e de dominância da política monetária.
Dominância monetária versus dominância fiscal
A dominância fiscal e a dominância monetária são os possíveis padrões de articulação entre a política fiscal e a política monetária.
A política fiscal domina a política monetária quando a autoridade fiscal elabora o orçamento público de forma autônoma, fixando a receita de senhoriagem que o banco central deverá suprir para cobrir eventual déficit. A política monetária deve ser consistente com esta política fiscal, e consequentemente o banco central perde o controle da base monetária e da taxa de inflação.
No cenário oposto, em que a política monetária domina a política fiscal, o banco central controla a base monetária de maneira independente e determina quanto de senhoriagem aportará para o orçamento fiscal. A elaboração deste deve ser consistente com a política monetária anunciada, prevendo a cobertura do déficit remanescente após o computo da senhoriagem pela venda de títulos. Neste arranjo, o banco central possui o controle permanente da taxa de inflação.
O regime jurídico de dominância fiscal dos primeiros 20 anos
A Lei nº 4.595, de 1964, criou o BCB com o objetivo institucional de executar, junto com o Banco do Brasil (BB), a política da moeda e do crédito do Conselho Monetário Nacional (CMN). Essa política tinha objetivos concorrentes, um dos quais se aproximava da estabilidade de preços, isto é, prevenir ou corrigir surtos inflacionários ou deflacionários. Contudo, esta finalidade revelou-se elusiva, dada a primazia que o CMN concedia às suas metas de caráter desenvolvimentista.
O regime jurídico sob o qual o BCB atuou nos seus primeiros 20 anos de existência subordinava a política monetária à política fiscal. Como o seu nome sugere, a política da moeda e do crédito conjugava a política monetária, entendida como o controle do volume dos meios de pagamento em circulação, à política creditícia oficial (subsídios e garantias), de caráter fiscal. Segundo a lei, o objetivo geral desta política era o progresso econômico e social. Também havia objetivos específicos. A política do crédito deveria propiciar o desenvolvimento regional harmônico da economia nacional. Já a política da moeda deveria atender às necessidades da economia e do seu desenvolvimento; prevenir ou corrigir surtos inflacionários ou deflacionários, depressões econômicas e outros desequilíbrios conjunturais; e obter o equilíbrio do balanço de pagamentos.
Em linhas gerais, cabia ao BC executar a política da moeda, e, ao BB, a política de crédito. O BC era também responsável por gerir a dívida pública externa e, a partir da LC nº 12, de 1971, a dívida pública mobiliária interna. Já o BB cumulava a função de agente financeiro do Tesouro. A separação de funções entre o BC e o BB não era tão clara, na medida em que o BB exercia funções típicas de banco central. Por isto, ambos eram considerados autoridades monetárias.
O meio de coordenação entre eles era o orçamento monetário. Este documento era uma previsão do balanço consolidado do BCB e do BB e veiculava estimativas dos desembolsos de cada política setorial e da expansão correspondente da base monetária. Desta forma, permitia compensar uma expansão não programada de alguma das contas contraindo outras.
O orçamento monetário operacionalizava-se por meio da “conta de movimento” que o BC possuía no BB. A Lei nº 4.595 permitira ao BB utilizar como fonte de custeio das suas atividades os recursos nele depositados que passassem para a propriedade do BC quando da criação deste. Estes valores eram mantidos numa conta-corrente em nome do BC existente no BB. A movimentação desta conta refletia as necessidades diárias de caixa do BB. Se desembolsasse mais recursos do que captasse no curso das suas operações, o BB creditava a diferença na conta, compensando o déficit de captação. Como os depósitos mantidos no BB integravam o conceito de base monetária, o aumento do saldo da conta de movimento constituía emissão monetária.
A certa altura, o próprio BC tomou parte na execução da política de crédito, adquirindo a função de banco rural e agroindustrial de segunda linha e a gestão de uma gama de fundos e programas. Os marcos neste processo foram a Lei nº 4.829, de 1965, que conferiu ao BC a administração do crédito rural, e a Lei nº 5.143, de 1966, que lhe outorgou a competência para arrecadar o imposto sobre operações financeiras. Esta lei destinou o produto do tributo para a formação de “reservas monetárias”, a serem vertidas segundo o CMN dispusesse. Estas reservas acabaram custeando ampla sorte de gastos fiscais, tais como subsídios à exportação, operações de crédito, financiamentos de exposições e feiras e até o orçamento de entidades públicas.
Além de emitir moeda para custear a política de crédito oficial, a Lei nº 4.595 permitiu ao BC fazê-lo para custear as operações de crédito do Tesouro e para adquirir títulos da dívida destinados a cobrir o déficit fiscal ou a financiar créditos orçamentários extraordinários. Com a LC nº 12, o BC passou subscrever títulos da dívida para cobrir o saldo da conta do Tesouro.
Neste regime jurídico de objetivos vários, a prioridade concedida ao desenvolvimento ofuscava a importância da estabilidade, quadro que se intensificou durante a ditadura militar. Não por coincidência, os símbolos do período são o “milagre brasileiro” e o descontrole inflacionário.
A separação das políticas monetária e fiscal nos dez anos seguintes
Em 1984, o CMN reconheceu a necessidade de eliminar a dependência do Tesouro da receita monetária e aprovou diretrizes cuja execução se estendeu pelos anos seguintes (Voto nº 283). Em 1986, determinou a suspensão da conta de movimento, passando as operações do BB de interesse do Tesouro a realizar-se mediante suprimentos específicos do BC; a transformação do BB em banco comercial pleno, sujeito aos recolhimentos compulsórios e com acesso ao redesconto do BC; e a exclusão dos depósitos mantidos no BB do conceito de base monetária (Voto nº 45). No mesmo ano, ocorreu a criação da Secretaria do Tesouro Nacional para executar o orçamento, no lugar do BB, e para gerir a dívida pública, no lugar do BC (Decreto nº 92.452).
Em 1987, seguiram-se a inclusão no orçamento da União de todos os programas oficiais de crédito e a proibição de o BC suprir recursos para operações de crédito alheias à política monetária (Decreto nº 94.442). Estas medidas acarretaram a extinção do orçamento monetário e da conta de movimento. Na mesma data, passaram para a administração do MF a dívida pública interna (Decreto nº 94.443) e os fundos e programas de crédito do BC (Decreto nº 94.444).
A Constituição de 1988 coroou a separação das políticas fiscal e monetária. Atribuiu ao BC o monopólio da emissão monetária, impedindo que a confusão de funções com o BB até há pouco reinante se repetisse, e tornou-o depositário das disponibilidades de caixa da União. Também proibiu o BC de realizar empréstimos diretos ou indiretos ao Tesouro, facultando-lhe operar com títulos da dívida apenas para regular a oferta de moeda ou a taxa de juros.
A construção do regime jurídico de dominância monetária nos últimos 30 anos
As reformas da década de 1980 puseram fim a um regime jurídico concebido deliberadamente para efetivar a dominância fiscal, calcado no custeio monetário de despesas de caráter fiscal do BB, do Tesouro e do próprio BC. Entretanto, ficou faltando uma reforma essencial: especificar o objetivo para o qual o BC estava autorizado a emitir moeda. Na ausência desta especificação, o BC continuou sujeito à política da moeda e do crédito do CMN e compelido a perseguir os seus vários objetivos. Assim, embora não tivesse mais o dever de custear o orçamento fiscal, não estava adstrito a controlar a base monetária almejando apenas a estabilidade de preços.
Para que a inflação fosse controlada, era necessário continuar a reforma institucional, atribuindo ao BC um objetivo compatível com a estabilidade do poder de compra da moeda e fixando salvaguardas para que a política fiscal não minasse a eficácia da política monetária. Dito de outro modo, era preciso institucionalizar um regime orientado para a dominância monetária.
Aos 30 anos de fundação do BC, o Plano Real finalmente o dissociou dos objetivos ecléticos da política da moeda e do crédito. Pela Lei nº 9.069, de 1995, o controle da base monetária passou a ter o propósito único de manter a paridade entre o real e o dólar, inicialmente fixada em um para um e passível de ajuste pelo CMN. Para tanto, o BC só poderia emitir moeda se adquirisse reservas internacionais em valor equivalente, atuando como uma “caixa de conversibilidade”.
O BC e o CMN deviam submeter ao Congresso uma programação monetária trimestral estimando a variação dos agregados monetários compatível com a estabilidade da moeda, à luz da evolução esperada da economia nacional. Neste contexto, a “estabilidade da moeda” não significava o controle da inflação, nomeadamente, a estabilidade interna da moeda. Significava a manutenção da taxa de câmbio, ou seja, a estabilidade externa da moeda. Desta forma, a meta do BC era manter a paridade cambial, ainda que dela resultasse inflação ou deflação.
A “âncora cambial” teve êxito em controlar a inflação estimulando as importações. Porém, a disciplina fiscal insuficiente elevou a aversão ao risco dos títulos públicos brasileiros no mercado externo, privando o BC das reservas necessárias para defender a paridade cambial. Em 1999, o Decreto nº 3.088 substituiu o câmbio fixo pelo regime de metas de inflação, com o BC passando a atuar exclusivamente para atingir a taxa de inflação que o CMN fixasse. Curiosamente, o decreto não estipulou que o objetivo do CMN ao fixar a meta de inflação era a estabilidade de preços, mantendo-o livre para para arbitrar entre os objetivos concorrentes da Lei nº 4.595.
Sob o novo regime, o BC passou a perseguir uma meta de taxa de juros, em lugar de uma meta para a base monetária. Cumpria-lhe identificar a taxa de juros compatível com a meta de inflação, segundo os seus modelos econômicos, e ajustar a base monetária de forma que o equilíbrio entre oferta e demanda no mercado monetário convergisse para aquela taxa.
A legislação posterior à introdução do regime de metas de inflação buscou tornar a política fiscal consistente com a política monetária. As reformas da década de 1980 haviam fechado as portas para o custeio do orçamento fiscal via emissão monetária. Agora, era preciso vincular o governo a práticas orçamentárias que conduzissem à sustentabilidade da dívida pública, condição sine qua non para a efetividade da política de juros em controlar a inflação.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), como é conhecida a LC nº 101, de 2000, disciplinou a relação financeira entre o BC e o Tesouro à luz das restrições constitucionais. Especificou que o BC poderia comprar títulos da dívida diretamente do Tesouro apenas para substituir os que estivessem vencendo na sua carteira, e impediu o Tesouro de comprar títulos da carteira do BC, salvo para reduzir o volume da dívida mobiliária, visando a preservar a capacidade do BC de executar a política monetária. Também disciplinou a transferência semestral dos lucros do BC para o Tesouro, criando para este, em contrapartida, o dever de cobrir os prejuízos do BC.
A LRF estabeleceu outrossim mecanismos de acomodação da política fiscal à política monetária. Estipulou que a lei de diretrizes orçamentárias deveria apresentar metas fiscais relativas a receitas, despesas, déficit e endividamento consistentes com os objetivos da política econômica. No que diz respeito especificamente às políticas monetária, creditícia e cambial e às metas de inflação, tais objetivos deveriam constar da mensagem de encaminhamento do projeto de lei. Mais recentemente, a Emenda Constitucional nº 109, de 2021, deu guarida constitucional à meta de sustentabilidade da dívida pública, tendo a LC nº 200, de 2023, efetivado os seus comandos.
Culminando o processo de construção de um regime jurídico propício à dominância monetária, a LC nº 179 consagrou a estabilidade de preços como objetivo precípuo da atuação do BC.
Aonde chegamos
Os 60 anos do BC são o relato de como o constituinte e o legislador substituíram um regime jurídico concebido para a dominância fiscal por outro orientado para a dominância monetária, após verificar que a inflação é incompatível com o bem-estar social a que a Constituição aspira.
Este novo regime estipula objetivos de longo e médio prazos aplicáveis tanto à política monetária quanto à política fiscal. No longo prazo, ambas devem almejar o bem-estar social, conceito que sintetiza as aspirações programáticas da Constituição de 1988. No médio prazo, devem atuar com vista à estabilidade de preços, bem público tutelado no legítimo exercício da discricionariedade legislativa, como reconheceu o STF ao julgar a constitucionalidade da LC nº 179 (ADI nº 6.696).
Não obstantes as amarras normativas progressivamente introduzidas, não tem sido raro observar a inconsistência da política fiscal em relação à política monetária, em detrimento do controle da inflação. Não por coincidência, o BC descumpriu a sua meta em vários períodos (anos 2001 a 2003; 2015 e 2017; e 2021, 2022, e 2024) e encaminha-se para novamente o fazer neste ano.
Aonde devemos chegar
O objetivo da sociedade para os próximos anos do BC deve ser efetivar plenamente o regime de dominância monetária cristalizado no ordenamento jurídico, tornando realmente excepcionais os episódios de descumprimento da meta de inflação. O BCB não está só nesta empreitada.
Com efeito, a estabilidade monetária vincula não só o BC, mas toda a administração pública. Logo, a política fiscal não pode embaraçar o sucesso da política monetária, competindo ao Tribunal de Contas da União e ao Poder Judiciário tutelar a sua efetividade. Aquele, por iniciativa própria; este, por provocação da sociedade ou do BC, titulares do interesse público primário e secundário, respectivamente, na manutenção do poder de compra da moeda.
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